Pesquisadores se surpreenderam ao encontrar carcaças de apenas uma espécie de cágado |
COMO AÇUDE MAIS ANTIGO DO
BRASIL VIROU 'CEMITÉRIO DE CÁGADOS'
O açude
do Cedro é resultado de uma das maiores secas que o Brasil e o Nordeste já
enfrentaram.
Em 1877, uma estiagem que se estenderia por três anos motivou,
apenas no Ceará, a retirada de 100 mil sertanejos do interior rumo a Fortaleza.
O imperador d. Pedro 2º pediu então um estudo das melhores áreas para construção
de açudes.
Iniciado em 1890, o açude do Cedro, em Quixadá (a 160 km de
Fortaleza), seria concluído 16 anos depois, já no período republicano, com
cinco barragens que represam o rio Sitiá. Foi a primeira grande construção no
Brasil envolvendo canais de irrigação.
Com capacidade para 125 milhões de m³ de água (ou 50 mil
piscinas olímpicas), o açude se integrou à paisagem local, em que se destaca a
Pedra da Galinha Choca. Ponto turístico tombado pelo patrimônio histórico
nacional, é usado nos dias atuais sobretudo para lazer.
Cento e quarenta anos (e uma seca de cinco anos consecutivos)
depois, o açude do Cedro secou em setembro de 2016 - o que tinha ocorrido
apenas quatro vezes, em 1930, 1932, 1950 e 1999.
Caminhando pelo local no mês passado, uma equipe de biólogos e
estudantes registrou uma amostra do tamanho do impacto ambiental: contou 439
carcaças de cágados - o réptil de carapaça muito parecido com as tartarugas e
os jabutis.
“O número ainda está
subestimado, pois muitos levaram carcaças para casa. É alarmante, pois
encontramos apenas uma espécie de cágado (Phrynops geoffroanus), justamente a mais resistente,
quando esperávamos pelo menos outras duas”, afirmou à BBC Brasil o biólogo Hugo
Fernandes-Ferreira, professor de Zoologia da Universidade Estadual do Ceará
(UECE).
Dimensão da seca
O Ceará entrou no quinto ano seguido com chuvas abaixo da média
- é a pior seca em cem anos, segundo a Fundação Cearense de Meteorologia.
O resultado se vê no mapa dos açudes do Estado - todos os 136
estão com volume inferior a 30% da capacidade, e quase cem estão vazios.
População e indústria já sofrem com restrições no abastecimento
e taxas extras sobre o consumo.
Para o climatologista Alexandre Araújo Costa, da UECE, a
situação combina fatores naturais e ação humana.
A seca recorde, afirma, possivelmente está associada ao
aquecimento global, mas também teve a influência do El Niño, fenômeno climático
que costuma agravar o quadro no Nordeste por impedir a chegada de frentes frias
à região.
Costa também critica a política de recursos hídricos do Estado,
que para ele favorece grandes empreendimentos como termelétricas em detrimento
do uso sustentável.
“Há negócios com outorgas indecentes, com algumas empresas
autorizadas a usar água que abasteceria quase dois milhões de pessoas.”
Visão do governo
Procurado pela BBC Brasil, o governo do Ceará rebate e afirma
que a “gestão eficiente e eficaz” da água permitiu, por exemplo, que a região
de Fortaleza “não sofra problemas de abastecimento”.
Em nota, a Secretaria de Recursos Hídricos disse ainda que a
gestão conta com participação da sociedade e permitiu reduzir de 75% a 100% o
uso de água nos principais vales irrigados do Estado.
Sobre as críticas às outorgas, a pasta da gestão Camilo Santana
(PT) diz que são autorizações de uso e que em “nenhum dos casos o valor
outorgado é plenamente usado”. Afirma que a indústria usa apenas 2% da
“disponibilidade hídrica” do Estado.
O açude do Cedro secou, avalia o governo, “pela falta de chuvas
X evaporação”. A gestão também afirmou que, “em que pese sua inegável
importância histórica”, o reservatório tem uso hoje apenas turístico.
Enquanto a chuva não volta, a equipe de Hugo Fernandes-Ferreira
no campus Quixadá da UECE continuará a analisar o “cemitério de cágados” do
açude, recolhendo cascos e tentando entender o impacto sobre o ecossistema da
pior seca em um século.
Reportagem e texto: Thiago Guimarães / Imagens: Gabribas Produções
(www.gabribas.com.br) e Hugo Fernandes-Ferreira
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