'NÃO TER UMA TATUAGEM FOI
MINHA VERSÃO DA REBELDIA': por que as indianas estão se negando a ser tatuadas.
Em vários lugares do
planeta, fazer uma tatuagem é hoje visto como um sinal de independência,
rebeldia e afirmação da identidade. Mas, para mim, a decisão de não me tatuar
foi a minha versão da rebeldia, uma afirmação da minha duramente conquistada
independência. Era minha maneira de dizer: "Eu não vou andar na
linha".
Cresci vendo as tatuagens, assim como os piercings
no nariz e na orelha, como símbolos da subordinação das mulheres. Minha mãe tem
algumas tatuagens, e minha avó tinha ainda mais. E elas me disseram que não
tiveram escolha sobre isso.
Em muitas comunidades rurais do Estado indiano de
Uttar Pradesh, no norte do país, de onde vem minha família, é obrigatório que
as mulheres casadas tenham tatuagens - conhecidas localmente como godna.
Minha mãe me contou recentemente que sua família
lhe disse que, "se não tivesse uma tatuagem, ninguém na casa (após o
casamento) beberia água ou receberia comida" oferecida por ela.
"Seria algo considerado impuro e intocável", ela me explicou. Meu
pai, é claro, não precisou tatuar-se porque, como mamãe disse, "ele era um
menino".
Ela foi noiva ainda criança e não tinha nem 11 anos
no seu casamento, na década de 1940. Poucas semanas depois da cerimônia, uma
mulher idosa que morava na vizinhança foi convocada para tatuá-la.
Suas
ferramentas eram rudimentares: uma agulha que era aquecida com fogo,
posteriormente introduzida na camada superior da pele queimada, preenchida com
pigmento de cor preta. Naquele tempo, não havia anestesia para conter a dor ou
pomadas para acelerar o processo de cicatrização. Era preciso um mês para que a
tatuagem cicatrizasse.
Mais
de sete décadas depois, as tatuagens da minha mãe desapareceram um pouco, mas a
memória da dor infligida na infância permanece viva. "Eu chorei. Eu fiquei
chutando a tatuadora. No final, ela reclamou para o meu avô. Ela disse que eu
era problemática", lembra.
Ela
não tem ideia do que os pequenos desenhos padronizados em seus braços
significam, algo que eu também não consigo descobrir. "Talvez seja um phool-patti",
diz ela, referindo-se às flores e folhas.
Keya
Pandey, uma antropóloga social da Universidade de Lucknow, na Índia, que tem
feito uma pesquisa ampla sobre tatuagens na parte rural e tribal do país, diz
que a flora e a fauna estão entre os desenhos preferidos nestes locais. Também
estão na lista os nomes de maridos ou pais, ou mesmo da aldeia, além de totens
e ícones da identidade cultural local.
Pandey
diz que viu tatuagens em todas culturas rurais na Índia e estima que milhões de
mulheres nas aldeias as possuem.
Em
algumas comunidades, especialmente em áreas tribais, tanto homens quanto
mulheres têm tatuagens. "É um símbolo de identidade, na vida e mesmo após
a morte. A ideia é que, quando você morrer e sua alma viajar para o céu ou para
o inferno e você for perguntado de onde vem, poderá traçar sua ascendência
através de suas tatuagens", diz ela.
Há
também comunidades onde as mulheres fazem tatuagens pela estética – embora
existam casos em que as mulheres de castas baixas se tatuam para tornarem-se
menos desejáveis, evitando ataques sexuais. Mas, em muitas comunidades, como na
minha aldeia ancestral, as tatuagens são destinadas apenas à mulher, um sinal
de seu estado civil.
Para
minha mãe e minha avó, elas eram um símbolo de pureza - segundo a ideia de que
a mulher deveria ser submetida a um ritual de purificação doloroso,
representando sua adequação ao patriarcado.
A
prática, no entanto, está em declínio - e muitas mulheres jovens, mesmo
meninas, estão dizendo "não" para as tatuagens. Com a modernidade e o
desenvolvimento frutos do contato com o mundo exterior, as coisas estão mudando
na Índia rural e tribal.
As
tradições estão sendo modificadas, e as meninas nas aldeias não estão mais
interessadas em se tatuar, diz Pandey. Em nenhum lugar isso é mais evidente do
que entre as meninas da tribo Baiga, no centro da Índia.
Por
mais de 2 mil anos, as mulheres ali têm sido marcadas. "A tatuagem começa
quando elas atingem a puberdade, recebendo um sinal na testa. Ao longo dos
anos, a maior parte do corpo é coberta pouco a pouco", diz Pragya Gupta,
da ONG WaterAid India.
Gupta,
que recentemente viajou para conhecer o acesso dos Baiga à água potável, disse
à BBC que todas as mulheres que conheceu tinham tatuagens - mas cada vez mais
meninas se recusam a seguir a tradição.
À
medida que a malha rodoviária melhorou, a televisão e os celulares chegaram e
as crianças começaram a ir à escola, muitas começaram a rejeitar o que foi
transmitido ao longo das gerações.
"Uma
criança de 15 anos chamada Anita tem uma tatuagem em sua testa e me disse que foi
algo muito doloroso, que nunca mais faria outra. Sua mãe, Badri, de 40 anos,
tem tatuagens cobrindo a maior parte de seu corpo ", diz Gupta.
A
rebeldia de Anita ganhou apoio de sua mãe. "Eu era analfabeta e aceitei
sem questionar o que meus pais me disseram. Mas ela vai à escola e, se não quer
uma tatuagem, tudo bem por mim", diz Badri.
Nos
últimos anos, indianos educados nas cidades começaram a fazer tatuagens
voluntariamente, inspirados por imagens de atores de Hollywood e músicos de
rock. Muitos dos meus amigos também fizeram isso.
Mas,
para mim, por conta do meu patrimônio cultural, as tatuagens continuam sendo um
tabu - um símbolo de subordinação.
Tatuagens
na história do mundo
* Acredita-se que existam há milhares de anos.
*
Foram usadas para marcar prisioneiros, servos e escravos.
*
Gregos e romanos antigos as possuíam, assim como os indianos antigos.
*
Judeus foram marcados com números nos campos de concentração.
*
Foram usadas também para identificar castas.
*
Muitas vezes entendidas como punições, já foram usadas para humilhar e
representar subordinação.
*
Às vezes, foram símbolos de propriedade sobre uma mulher, trazendo os nomes de
seu pai ou marido.
Geeta PandeyDa BBC News em Nova Déli
Fonte:
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-41520408
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