Com quase 4 milhões de habitantes, cidade sul-africana se aproxima do "Dia Zero", quando nem mais uma gota de água potável verterá das torneiras
Já pensou em viver com apenas 25 litros de água por
dia para suprir todas suas necessidades de higiene, alimentação e
tarefas domésticas? Dias de secura que remetem a um futuro distópico
estão se aproximando dos cerca de 3,7 milhões de habitantes da região
metropolitana da Cidade do Cabo, segunda maior cidade da África do Sul.
Por comparação, um morador de São Paulo, por exemplo,
utiliza em média 187,97 litros por dia, enquanto, para a ONU
(Organização das Nações Unidas), 110 litros de água por dia são
suficientes para atender as necessidade básicas de uma pessoa.
Na Cidade do Cabo, porém, esses números beiram o luxo.
Diante da seca histórica que castiga a região, as autoridades locais
recomendam que a população reduza o consumo atual, de 85 litros de água
por dia, para 50 litros de água, de forma a poupar o recurso escasso.
Se a situação das reservas que abastecem a cidade caírem
para 13,5%, as autoridades começarão a desligar o fornecimento em áreas
residenciais. Com a torneira seca, a população só poderá recorrer a 200
pontos de coleta disponibilizados na cidade para receber apenas 25
litros de água por dia.
Mantido o ritmo atual de consumo, isso deve acontecer entre
os dias 12 e 16 de Abril. Embora a data exata dependa do clima e dos
padrões de consumo nos próximos meses, ela já tem nome: “Dia Zero”. Se o
dia fatídico chegar, a Cidade do Cabo se tornará o primeiro grande
centro urbano do mundo a ficar sem água.
Fila para pegar água
Os seis maiores reservatórios da cidade operavam com 25,8%
de sua capacidade em 02 de fevereiro. A reserva de Theewaterskloof – o
maior reservatório e fonte de aproximadamente metade da água da cidade –
está na pior situação, com o nível da água em apenas 13% da capacidade.
Onde outrora a água era abundante, resta apenas um magro
curso hídrico cercado de uma paisagem árida, como revela a imagem abaixo
feita por satélites da agência espacial americana Nasa.
Segundo as autoridades locais, haverá seções separadas para
acesso de pedestres e veículos aos pontos de coleta, bem como acesso
para aqueles que coletam em nome de grupos vulneráveis. Mas não há
garantias para agricultores e trabalhadores agrícolas. A indústria
vitivinícola da África do Sul emprega cerca de 300 mil pessoas e forma a
espinha dorsal da economia rural.
Desligar o sistema de distribuição significa não ter água
saindo da torneira de casa para realizar tarefas simples e essenciais,
como tomar banho, dar descarga no banheiro e cozinhar. Temendo um
acirramento da tensão social em face da gravidade da crise, a África do
Sul usará suas forças militares para proteger o abastecimento de água e
evitar conflitos.
Placa alerta sobre restrições de água na Cidade do Cabo
A extrema escassez de água na cidade reflete três anos
consecutivos de seca, associados a um boom populacional e a divisões
políticas. Entre 1995 e 2018, a população da Cidade do Cabo aumentou
cerca de 80%. Durante o mesmo período, a capacidade de armazenamento das
barragens aumentou apenas 15%.
Em 2007, o Departamento Nacional de Água e Saneamento emitiu um aviso sobre o abastecimento de água da região dizendo que seriam necessária novas fontes de água até 2015.
Em resposta ao alerta, as autoridades locais iniciaram uma
forte campanha de combate às perdas nas redes de distribuição, de
gerenciamento de pressão, substituição de medidores de água, além de
programas de conscientização social para reduzir o desperdício de água, a
fim de tornar mais racional todo o fornecimento de água.
A estratégia foi eficaz e a cidade atingiu seu objetivo de
redução de consumo três anos antes de 2015, garantindo um suprimento
seguro para a população até pelo menos o ano de 2019, com base na
precipitação e uso normal do recurso.
Os esforços pela eficiência no uso da água vistos na cidade,
porém, não ecoaram no campo. Conforme observa o pesquisador David W.
Olivier, do Instituto de Pesquisa de Mudanças Globais da Universidade de
Witwatersrand, as cidades não têm o poder de fazer alocações de água
para a agricultura. Isso é feito pelo governo nacional.
Na contramão das iniciativas de prevenção e economia
adotadas na cidade, “o Departamento Nacional de Água e Saneamento não
tomou medidas para reduzir o uso agrícola da água em 2015/2016”, escreve
Olivier em análise publicada no site The Conversation.
Em última instância, o pesquisador aponta que a falta de
articulação na gestão hídrica, alimentada segundo ele por divergências
partidárias, “impulsionou a demanda por água além da capacidade do
sistema de abastecimento” na região.
Multidão faz fila para buscar água em um dos 200 pontos de coleta na cidade
Com a sequência de secas severas nos últimos anos, que
surpreendeu os meteorologistas, o sistema colapsou. Embora a cidade já
tenha vivido momentos de seca em anos passados, geralmente o martírio
terminava com a chegada da temporada de chuvas, o que não ocorreu agora,
uma “surpresa” que sinaliza os riscos que as mudanças climáticas
representam para as sociedades humanas.
“Este deve ser um alerta para autoridades da cidade e governos nacionais em todo o mundo”, diz o Financial Times
. “Muitas das maiores cidades do mundo são extremamente vulneráveis aos
efeitos das mudanças climáticas – secas mais longas, chuvas mais
pesadas, aumento do nível do mar, incêndios florestais mais ferozes,
piora da poluição do ar e ondas de calor”.
Na tentativa de conter a crise hídrica, a cidade corre
contra o tempo para implementar projetos de reuso de água e novos pontos
para retirada de água subterrânea. Dada a severidade da seca e
incerteza em relação às chuvas nos próximos meses, o governo local
também recorre a projetos mais temporários — e caros –, como a
construção de três usinas de dessalinização da água do mar, vinculadas a
um contrato de apenas 24 meses com a empresa responsável pela
construção e operação.
Embora necessárias, intervenções tecnológicas não dão conta
sozinhas de mitigar a crise, a população também precisa colaborar.
Segundo a mídia local, com base nos dados oficiais, apenas cerca de 55%
dos residentes da cidade estão realmente aderindo à redução do consumo
proposto, de 50 litros por dia.
Nos lugares onde a economia é menor, a pressão da água está
sendo diminuída para reduzir o desperdício e regular o consumo. Para
muitos sul-africanos, porém, a torneira seca já é uma realidade, o que
dá origem a longas filas nos postos de coleta, uma imagem que ameaça se
tornar cada vez mais corriqueira em tempos de mudanças climáticas e
descaso com o recurso mais precioso para a vida.
Nível do reservatório de água
Fonte: https://exame.abril.com.br/mundo/cidade-do-cabo-pode-se-tornar-1o-grande-centro-urbano-sem-agua/
Acesso: 04 fev. 2018.
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