Karen
Armstrong: “É muito fácil dizer que é religião, mas o terrorismo é sempre
político ”
Estudiosa da religião, Armstrong foi freira por
sete anos e defende que o ser humano deve acreditar em sua própria
transcendência.
De
Deus ao Twiter. Da
música ao Jihadismo.
Karen Armstrong transforma uma conversa numa montanha russa de conceitos, na
qual aparece, recorrente, a palavra “compaixão” como bálsamo para muitos dos
problemas que inquietam esta sociedade – que, na sua opinião, não é o que
acredita ser. Na organização Charter for Compassion, ela se esforça para
transformar um mundo onde as pessoas pensam excessivamente em si mesmas e muito
pouco nas demais.
Pequena e
enérgica, Armstrong fala durante este encontro em Oviedo, na Espanha, por
ocasião de seu recente Prêmio Princesa das Astúrias de Ciências Sociais, sobre
as semelhanças entre as religiões. E
expressa espanto ante certas modas atuais que se apresentam como libertadoras.
Apaixonada pelo fenômeno religioso, ela explicou em detalhes, nas páginas do
livro Los Orígenes del
Fundamentalismo (As Origens do Fundamentalismo, ainda sem
edição no Brasil), por que ocorre a radicalização religiosa. E ressaltou no
ensaio Em Nome de Deus,
editado pela Companhia das Letras, a importância para o ser humano de acreditar
na própria transcendência.
Pergunta. A senhora diz
que vivemos numa sociedade “essencialmente conservadora”, mas “altamente
dogmática”. No entanto, se sairmos às ruas para perguntar, quase ninguém se
reconhecerá como dogmático – e muitos, inclusive, se orgulharão de ser
tolerantes.
Resposta. Realmente não
gosto da palavra tolerante. Se analisarmos sua origem, veremos que ela tem uma
raiz latina que significa “suportar algo”. É a linguagem do vencedor que diz
que vai tolerar a minoria. Temos que ir além disso, pois vivemos num mundo
global cada vez mais interdependente. Se a Bolsa cai num determinado lugar, os
mercados também cairão no mundo todo nesse mesmo dia. Estamos conectados
eletronicamente. O que acontece na Síria hoje pode ter
repercussões aqui amanhã, e já vimos isso. Não podemos viver mais sem os
outros, e ainda assim vemos pessoas que se entrincheiram em guetos nacionalistas. Embora
todos saibam que têm que ser tolerantes, isso é o que acontece. Acredito que os
meios de comunicação também tenham a sua parcela de responsabilidade.
P. Em que sentido?
R. Dou um exemplo.
Eu escrevo sobre o islã. Desde o 11 DE Setembro, foram realizadas pesquisas que
deveriam ser relevantes para o público em geral, mas as pessoas nunca ouviram
falar delas. Depois dos atentados, um psiquiatra forense que não é exatamente
um liberal, e sim um ex-agente da CIA, foi enviado a Guantánamo para
entrevistar os prisioneiros e viu que só 20% deles tinham uma educação
muçulmana. Os demais eram convertidos – alguns autodidatas – ou não eram
praticantes até se converterem ao radicalismo. Não respondem, portanto, à
imagem que temos dos fundamentalistas. Inclusive dois jovens que deixaram o
Reino Unido para combater com o Estado Islâmico (EI)
na Síria haviam encomendado na Amazon um livro chamado Islam for Dummies (islã
para bobos), o que mostra sua absoluta ignorância! Após o 11 de Setembro, o
instituto Gallup fez sua maior pesquisa até então realizada: em 35 países de
maioria muçulmana e durante cinco anos. Os participantes deviam responder se
justificavam os atentados, e 93% disseram que não. E seus motivos foram
totalmente religiosos, citando o Corão. O interessante é que, para os 7% que
justificavam o 11 de Setembro, as razões não eram religiosas, mas políticas.
Esse tipo de coisa deveria aparecer nas capas de jornais como o The New York Times para
que o público tivesse uma ideia mais completa do problema que enfrentamos. É
muito fácil dizer que isso é coisa da religião, mas o terrorismo, seja qual for
a sua motivação, é sempre político.
P. O mundo laico
identifica dogmatismo com religião. Em muitos ambientes, declarar que se
professa uma religião é como segurar um cartaz com a palavra dogmático escrita
nele.
R. Continuemos com
o exemplo do islã. O dogmatismo que se vive nele é uma coisa relativamente
recente. Até o século XIX, o sufismo era a tendência dominante, e um sufi lhe
dirá que ele não é nem muçulmano, nem cristão, nem judeu. Que se sente em casa
numa mesquita, numa igreja e numa sinagoga. Infelizmente, isso mudou por causa
da Arábia Saudita,
que conta com um grande apoio do Ocidente graças ao petróleo e que
exportou uma forma muito peculiar do islã que remonta apenas ao século XIX.
Várias gerações de jovens muçulmanos cresceram com essa versão muito limitada
de sua religião.
P. A senhora diz
que, durante o século passado, o fanatismo ganhou terreno nas três grandes
religiões. Mas a percepção nas sociedades ocidentais não é essa. Não há um
terrorismo cristão matando gente.
R. Sim, mas existe
um terrorismo budista matando gente no Sri Lanka e, perdão
que lhe diga isso, estou sentada num hotel que se chama Reconquista, recordando
que aqui se lutou em nome de Deus. Embora soe estranho, os jihadistas não são
particularmente religiosos. Se fossem, insisto, eles não fariam essas coisas. E
a mídia é responsável por não ressaltar, com a suficiente determinação, ideias
que vão contra essa imagem. Desde que começamos a nos transformar num mundo
global, no século XX, ganhou projeção a ideia de como as religiões são
diferentes: judaísmo, cristianismo e islã. E existem pessoas que se refugiaram
em pequenos grupos que denominamos fundamentalistas. Isso começou nos Estados
Unidos e, posteriormente, chegou ao Oriente Médio a partir da Guerra
dos Seis Dias. A derrota árabe nesse conflito foi vivida como um drama, e tudo
isso levou a um sentimento de profundo medo da aniquilação, do qual esses
grupos se aproveitam.
P. Desde a
Revolução Francesa, é complicado o encaixe da religião na sociedade moderna. A
senhora enfatiza que a religião é um fator que ajuda a manter as coisas
tranquilas, mas a realidade parece seguir na direção contrária.
R. Atualmente,
escrevo um livro sobre a importância da escritura nas religiões. E, para a
minha surpresa, vi que todas podem nos ajudar a lidar com nosso presente. Por
exemplo, a religião hindu trata do meio ambiente... e temos um furacão
avançando rumo à Irlanda [em referência à tempestade Ofélia, que atingiu o país
europeu em outubro]. As religiões monoteístas sempre insistiram na igualdade e
na justiça. É a mensagem do Corão, do Evangelho e dos profetas de Israel, mas
não encontramos ainda uma motivação racional para promover a universalização
dos direitos humanos. E são as religiões, e não os Estados, que hoje falam em
nome dos pobres. Aí está o Papa – nunca me imaginei dizendo isso – por exemplo.
Realmente gosto do que ele está fazendo. Está colocando o dedo na ferida, e não
vejo muitos outros fazendo isso. A separação entre Igreja e Estado sempre é
boa, mas a religião pode servir de contrapeso.
P. Façamos um
silogismo. As religiões, segundo a sua obra, são algo essencialmente prático. A
tecnologia também é prática. É a nova religião?
R. Dá um pouco de
medo. Veja o caso do Twitter. A ideia de que você pode expressar pensamentos
substanciosos em 140 caracteres, ou quantos forem, é perigosa, pois reduz a
complexidade. Isso sem falar de todo o ódio que aparece e que as pessoas podem
lançar sem estar cara a cara com os interlocutores. Supostamente é algo que
serve para unir, mas, ao mesmo tempo, está fazendo aflorar alguns de nossos
piores defeitos. Apesar disso, é curioso como as pessoas preferem falar dessa
maneira em vez de fazê-lo pessoalmente. É até mesmo dramático ver como um grupo
sentado ao redor de uma mesa, em vez de conversar, concentra-se individualmente
em seus telefones. É estranho, pois é como sair do próprio corpo. Os
neurologistas dizem que aprendemos através dele; por isso os rituais são
importantes. Não é por acaso que um muçulmano reza voltado para Meca e que o
canto tenha sido tão importante na Idade Média. Esse aprendizado com o corpo
está se perdendo, especialmente desde o Iluminismo, e a tecnologia é o último
passo nessa direção.
P. Causa-lhe
preocupação que grande parte das novas gerações seja incapaz de processar
ideias complexas?
R. Isso poderia
acontecer. A tecnologia está mudando a linguagem e a maneira de falar e
escrever. Muita gente é incapaz de escrever. Mas, para ser sincera, não
escrevemos durante tanto tempo assim; somente poucas pessoas podiam fazê-lo até
o século XIX. E devo dizer que, além do Papa, tampouco vejo as pessoas no campo
da religião utilizando a complexidade. O islã, por culpa da influência saudita,
está sofrendo o crescimento do dogmatismo e da simplicidade mal entendida. E
não é o único. Representantes da Igreja da Inglaterra se reuniram uma vez para
debater a questão dos padres gays. Pudemos ver isso, porque foi retransmitido
pela BBC, e eles falavam
entre si com tanto ódio...
P. Existe remédio
para isso?
R. Recordar a
regra de ouro: nunca faça aos outros o que não deseja que façam com você.
Enquanto não aprendermos a aplicar isso de uma maneira global, incluindo a
todos, gostemos deles ou não, o mundo simplesmente não será um lugar onde se
possa viver. É muito interessante ver como muitas das pessoas que oferecem
ajuda não são os líderes religiosos, e sim homens de negócios, o que tem seu
lado bom porque eles sabem como fazer as coisas de uma maneira prática. Alguns
descobriram que a avareza e o egoísmo são ruins para o negócio em si.
Deveríamos estar falando de como fazer para que as pessoas pensem nos demais.
Buda, Cristo e Maomé não viveram em sociedades pacíficas, e sim mergulhadas em
instabilidade, e os três insistiram que não se pode aplicar a compaixão somente
para os do seu grupo.
P. Hoje, no
entanto, como convencer alguém de que ter compaixão não é ser fraco?
R. É um assunto
complicado. Parte do problema não tem a ver com ser forte ou fraco, mas com o
fato de que estamos transformando a religião numa espécie de viagem da pessoa
em si mesma. Há muita ioga que acaba parecendo um Cubo de Rubik (ou cubo
mágico), algo do tipo “seja mais feliz”. O mindfulness [forma
de meditação também conhecida como “atenção plena”], por exemplo, é uma
loucura. Tudo se baseia em estar em contato com você mesmo, com os seus
sentimentos, quando na verdade o ponto central do mindfulness budista
consiste justamente no contrário: em renunciar completamente a você mesmo!
Existem pessoas que te dizem: “Ok, mas começo tendo compaixão por mim mesma.”
Isso é ficar muito aquém do objetivo. É preciso ir até o final, compreender e
amar os inimigos, entendendo o que isso realmente significa. Não se trata de
algo sentimental, e sim de algo mais prático. Não é se amar, é se ajudar e se
importar com os interesses dos outros. Se o Império Britânico tivesse se
comportado segundo essa regra de ouro, não teríamos tantos problemas hoje no
Oriente Médio.
P. O lema da
diplomacia deveria ser algo como “não faça o que não deseja que lhe façam”?
R. Sim. Após o
atentado ao Charlie Hebdo em
Paris, estive na Jordânia num encontro com a família real, políticos e
diplomatas. Havia ali uma pessoa que tinha trabalhado no acordo de paz com
Israel. Em certo momento, ela disse: “O Ocidente perdeu sua humanidade”, e isso
me deixou comovida. Ela dizia isso pela quantidade de pessoas que morrem –
inclusive hoje – em países como Iraque, Síria, Afeganistão e Paquistão por
ataques de drones ocidentais que nunca são mencionados. Estamos dando a
impressão ao mundo de que certas vidas valem mais que outras. Deveríamos
estabelecer relações fraternais entre cidades, mas não como ocorre na Europa
com um bonito povoado alemão, e sim com lugares como Karachi; com pessoas as
quais possamos dizer: “Conte-nos o que estamos fazendo de errado”.
P. E, no meio
desse panorama, a senhora reivindica a música.
R. Sim, claro. A
música é significado sem palavras. Nos toca profundamente. É uma arte física,
não uma viagem mental. Durante muito tempo, os instrumentos foram fabricados
com tripas e tendões, algo muito físico, mas ao mesmo tempo [a música] é
misteriosa porque chega até nós sem palavras e ajuda na nossa própria
transcendência. Agora que estou mais velha, o que preenche meu coração são os
cantos gregorianos que aprendi sendo freira. O que os monges gregos fazem é
incrível: o canto faz brotar o sentido. Limitar-se a ler as escrituras
religiosas não proporciona isso. Assim, Haendel e Bach vêm resgatar as
cerimônias protestantes, para dar a elas essa dimensão. O silêncio também é
importantíssimo. Por exemplo, esse momento que ocorre no final de um concerto,
quando a orquestra terminou de tocar mas ninguém ainda começou a aplaudir. É um
momento muito intenso.
P. Se essa música
é tão importante, o que escutamos diariamente em todos os lugares é uma
perversão da música?
R. Não sei. Eu era
uma grande fã de Bob Dylan. Ele é inconformista e tem letras maravilhosas.
Quando deixei de ser freira, foi a primeira voz moderna que escutei. Mas não
entendo a música atual. Dum-dum-dum. A música deve levar nossa atenção a alguma
coisa, não apenas rememorar uma espécie de tambor tribal. É algo que deveria
empurrar você para fora de si. Como dizia Buda, depois de conseguir a
iluminação você deve voltar a se colocar no lugar de um macaco e praticar a
compaixão com todos os seres humanos. Nenhuma dessas grandes pessoas ficou no
alto da colina praticando mindfulness e
coisas do tipo. Buda enviou seus monges entre as pessoas. Jesus não ficou
sentado à mesa; inclusive era considerado um criador de problemas. Confúcio foi
falar com um imperador sobre como mudar a China; e Maomé regressou a Meca para
enfrentar o caos que havia ali naquele momento.
P. A religião,
então, não é algo sobre o céu, e sim sobre o mercado?
R. É preciso ir ao
mercado e levar algo. Maomé dizia que você não pode professar uma fé se puder
dormir tranquilo sabendo que alguém passa fome. E nós hoje sabemos da fome e da
devastação em grande escala porque as vemos nas telas todas as noites. Isso
deveria nos trazer um profundo incômodo, pois nos mostra como nossa vida é
incrivelmente privilegiada. Como prática espiritual, deveríamos conservar
conosco uma dessas terríveis imagens e recordá-la três vezes por dia. Pensar
nessa criança doente e faminta desde a primeira hora da manhã. Podemos
acreditar que não se pode fazer nada, mas não devemos cair na autoindulgência
de dizer: “Sou muito sensível a isso, mas não posso.” O incômodo é o que nos
fará sair da nossa armadura.
P. Mas agora
podemos serenar nossa consciência dando likes ou
compartilhando fotos no Facebook.
R. Mas não é
suficiente. É um pouco perverso ter um instante de compaixão e depois passar
para outra coisa. Sentir-se incomodado com a realidade é bom; caso contrário,
algo estranho está acontecendo. Você deveria se sentir incomodado!
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/07/eps/1510080049_545323.html
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