O SUPREMO CONTRA A CONSTITUIÇÃO
O
Judiciário, mais que o Executivo pervertido, é instrumento de autoritarismo.
O Congresso Nacional,
que tanto a tem ofendido, comemorou os 29 anos de atormentada vigência da
Constituição de 1988, a da redemocratização, texto inaugural da Nova República,
ciclo histórico-político cujo melancólico esgotamento estamos assistindo.
Cercada por réus, presentes e futuros, a começar pelos dirigentes das duas
casas legislativas, a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, saudou a
efeméride, lembrando a frase bordão com a qual o presidente da Constituinte, o
saudoso deputado Ulisses Guimarães, anunciou o novo texto, ditando os limites
de seu império.
Da
Constituição, dizia ele, e repetiria a ministra, pode-se “Discordar, sim.
Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. Na solenidade bizarra, a
constitucionalista ministra falava em nome de um Poder Judiciário que
sistematicamente descumpre a Constituição, e dirigia-se a um Congresso useiro e
vezeiro em afrontá-la.
Descumprida
vem sendo a Carta desde sua promulgação, no que tanto se esmeraram os governos
Sarney e FHC, ao ponto de hoje, após 96 emendas e uma série de decisões
‘criativas’ do STF (e mesmo ‘interpretações extensivas’ de juízes de piso) ser
quase tão-só um rol de artigos e parágrafos, sem a costura de uma ordem
sistemática, perdida, desfeita a indispensável visão de ordem
político-jurídica, carente enfim de uma clara feição ideológica, na medida em
que dela foi surrupiado aquele projeto de sociedade democrática que a fez
merecer o batismo de ‘Constituição cidadã’.
Mas, se as
agressões vêm de longe, é preciso dizer que jamais nossa ordem
constitucional foi tão descumprida e afrontada como nos últimos tempos, pois à
frente das ofensas está o Poder cuja missão e justificativa de existência é sua
proteção.
Descumpre-a
e a ofende e a afronta o STF quando admite a prisão após condenação em segunda
instância, mandando às favas (como gosta o inefável Gilmar Mendes) a alínea
LVII do artigo 5º, que dita os Direitos e Garantias Fundamentais: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Assim, nossa pretensa Corte Constitucional, candidata a poder moderador da
República, põe por terra um princípio universal do direito ocidental, qual
seja, a presunção da inocência.
O STF
ofende à Constituição e ofende a história do direito brasileiro quando decide
que a lei penal (no caso, dispositivos da chamada ‘lei da ficha limpa’) pode
retroagir para prejudicar o réu, levando-nos de volta ao estágio mais primitivo
da ciência criminal, e, mais uma vez, e lamentavelmente não pela última vez,
rasgando o já citado art. 5º, quando, em sua alínea XL – com a clareza da luz
do sol – prescreve que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o
réu’. Esse retrocesso foi decidido pelo voto de minerva da ministra Cármen
Lúcia, constitucionalista em seus tempos de Belo Horizonte. Eis a conclusão de
seu voto: “Essa matéria foi exaustivamente analisada pelo Tribunal Superior
Eleitoral, prevalecendo esse entendimento [da retroatividade] de maneira
correta”.
São
exemplos marcantes que, todavia, não esgotam o rol dos direitos ofendidos,
fruto, dentre outros fatores, da cultura autoritária-penalista que
permeia como um todo o poder judiciário brasileiro. São as ‘flexibilizações’
interpretativas, o ‘criacionismo’ de conveniência no qual se investem os
ministros, ocupando a competência privativa do constituinte, sem qualquer legitimidade,
pois desprovidos daquele mandato que apenas a soberania popular pode outorgar.
Violência
judiciária, portanto ofensa à ordem constitucional, é o cumprimento de pena
cerceadora da liberdade – o mais importante bem depois da vida de
que desfruta o cidadão – sem investigação, sem processo, sem julgamento,
sem sentença condenatória. Afronta a Constituição fazer das medidas cautelares
verdadeiras penas, aplicadas sem julgamento, com a transformação da prisão
preventiva em pena sem prazo. (No Brasil, cerca de 40% dos presos estão
cumprindo pena sem julgamento).).
Ofende à
Constituição a aplicação do Direito depender não da ordem legal, mas do ânimo
do juiz ou do nome do acusado. Assim, a nomeação de Luiz Inácio Lula da
Silva para a chefia da Casa Civil da presidente Dilma Rousseff constitui
tentativa de obstrução da Justiça, e nesses termos é vedada, enquanto a
nomeação de Moreira Franco para a chefia da Secretária-geral do Planalto, no
atual governo, garantindo-lhe foro privilegiado que o livra presentemente de
inúmeros processos, é, diz o STF, ato republicano.
Em qual
país civilizado do mundo (excluída, portanto, alguma área síria controlada pelo
estado islâmico), pode uma só pessoa, o mesmo juiz, cumprir, no mesmo processo,
simultaneamente, os incompatíveis papéis de investigador, promotor e julgador,
caso que é do juiz Sérgio Moro nas ações com as quais persegue o ex-presidente
Lula..
Exorbita
de seu poder o STF quando, qualquer que seja a motivação, interfere nos
ritos próprios do Congresso. Tergiversa e produz um direito caolho quando
variam suas decisões na medida em que variam os nomes dos senadores que
pretende ora punir, ora proteger.
Ofende à
ordem constitucional a pletora de liminares que permanecem sem decisão de
mérito. A avalanche de decisões monocráticas – conflitantes entre si,
aumentando a insegurança jurídica – prosperam sem a revisão de uma Turma ou do
Plenário, transformando o STF em onze tribunais, ou cada ministro em um
mandarim, onipotentes, olímpicos, inalcançáveis pelo Direito que rege a
cidadania. Porque fazer os ministros seus colegas cumprirem o regimento e
respeitar os prazos é atributo e dever a que tem renunciado a presidência.
Triste
República, quando o Judiciário, mais que o Executivo pervertido, é instrumento
de autoritarismo.
Como
sempre, o ministro Gilmar Mendes é a medida dos desacertos do STF que têm
levado o Poder Judiciário à mais grave crise de legitimidade de sua história.
Esse juiz, objeto de vários pedidos de impeachments barrados no Senado Federal
e por seus colegas no STF, segura processos durante sete anos, derruba liminar
que ele mesmo concedera e volta a retirar o caso da pauta. Concede habeas
corpus a réus que integram sua rede de relações, e não se peja de
julgar constituintes de sua mulher, advogada sócia do escritório de Sérgio
Bermudes – que defende Eike Batista, julgado por Gilmar. Na Adin
interposta pelo Conselho Federal da OAB contra o financiamento eleitoral por
empresas, Gilmar Mendes pediu vista do processo e engavetou os autos em seu
gabinete por quase dois anos. Isso, quando a matéria, por maioria de votos, já
havia sido decidida. Ninguém na Casa acusou esse comportamento como obstrução
da justiça...,
O
Poder Judiciário transformou-se num sistema cujo objetivo, esquecido o dever de
promoção da Justiça, é a criminalização, a punição. Trata-se de um
sistema pré-Beccaria, sedento de holofotes e fama (que disputa com o
Ministério Público e a Policia Federal), especializado em perseguir, sob o
falso pretexto de procurar garantir a eficácia de suas metas (a condenação). Os
holofotes, desde o chamado mensalão, determinam quem é culpado ou
inocente. O ativismo partidário, praticado dentro e fora dos autos,
praticado nas sessões do STF transformadas em palanques, em entrevistas, em
palestras, em reuniões públicas, o boquirrotismo de ministros e juízes
notórios... tudo isso implica graves prejulgamentos, antecipação de voto,
ingerência descabida na política.
Cabe à
ministra Cármem Lúcia, pois que o Conselho Nacional da Magistratura já foi
declarado incompetente, chamar às falas os ministros que mandam a Constituição
e o Regimento do STF às favas.
A decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) por seis votos a cinco (como quase sempre),
segundo a qual as escolas públicas podem oferecer ensino religioso
confessional, permitindo que as aulas sejam ministradas pelo representante de
apenas uma determinada crença, é retrocesso que vem facilitar o fundamentalismo
religioso que tanto atraso tem imposto à política brasileira e que fere a
essência do Estado laico, conquistado pela República. A teoria do domínio
do fato, importada para provocar as consequências conhecidas, envergonha a consciência
jurídica.
O mais
grave da crise brasileira, por consequência de tudo isso e o mais que ainda se
pode demonstrar, é a autodeslegitimação do Judiciário, mediante a erosão
da confiança da sociedade, que vê desmoronar o ultimo abrigo da cidadania. A
razão do Olimpo foi levada a extremos: os deuses deixam de aplicar a lei,
tornam-se a própria lei, e a Constituição uma obra aberta, costurada a cada dia
por suas decisões.
Enquanto o
poder judiciário, liderado pelo STF, se apequena, a crise – que transita da
política para a institucionalidade em face da falência dos três Poderes – nos
leva ao questionamento da legitimidade da ordem política, o que abre espaço
para tudo o que se possa imaginar, e se pode imaginar o mais grave possível,
quando vemos, na base da estrutura política vencida, a frustração da alma
nacional, quando a esperança de futuro transita do temor ao desconhecido
para a expectativa do trágico.
Um
guerreiro que parte –
Aos 82 anos de idade e uma vida toda dedicada à construção socialista, morreu
(15/10) meu querido amigo Ricardo Zarattini, antigo militante do Partido
Comunista Brasileiro, e, depois do golpe, militante do PCR (Partido Comunista
Revolucionário), do MR-8 e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Na campanha da
redemocratização ingressa no Partido dos Trabalhadores, onde permaneceria até
seus últimos dias. Preso e condenado pela ditadura (1968), foi um dos 15
presos políticos soltos em troca da libertação do embaixador (EUA) Charles
Burke Elbrick. Exilado no México e em Cuba, retornou ao Brasil para se integrar
na luta contra o regime militar. Muito do que usufruímos hoje de liberdade
devemos ao seu estoicismo.
Roberto
Amaral — publicado 17/10/2017
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica/o-supremo-contra-a-constituicao
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