UMA VIDA
ABSURDA, ACEITA COMO NATURAL.
Cada novo
aumento da produção automobilística é comemorado pela mídia. Compram-se
automóveis em 99 prestações. Entupidas, as cidades param. Estaremos, como diz
Paulo Mendes da Rocha, nos dedicando a aprimorar a máquina de produzir veneno
que inventamos?
O
governo, os empresários e a mídia comemoraram, em 2007, a produção de três
milhões de automóveis no Brasil. Agora, ambicionam uma meta ainda maior. Grande
parte desses carros foi vendida na cidade de São Paulo. Todos os dias, 650
novos automóveis (além de 250 motos) são licenciados. São apenas os últimos
acréscimos a uma frota de seis milhões de veículos — a segunda do mundo. A
capital paulista enfrenta um trânsito cada vez mais lento, forçando grande
parte da população a passar horas e horas em congestionamentos.
Apesar do
aumento do preço do petróleo, a indústria automobilística mundial conhece um de
seus maiores booms. Fabricantes indianos e chineses introduzem no
mercado veículos de 2.500 dólares, que cedo ou tarde chegarão aqui. No Brasil,
carros zero são agora financiados em até 99 meses.
É
perceptível que a velocidade de circulação nas cidades brasileiras está caindo
rapidamente (o Rio de Janeiro está seguindo o caminho de São Paulo). Todos vêm
sentindo as conseqüências tanto da irresponsabilidade das autoridades para com
o transporte coletivo quanto da expansão sem barreiras da frota de veículos. A
quantidade dos que rodam em São Paulo cresceu. Em um ano, houve um aumento de
7%, sendo três quartos automóveis que, normalmente, circulam apenas com seus
motoristas. A enorme expansão do número de motocicletas (cerca de um milhão),
autorizadas pela legislação em vigor a circular entre as faixas, também
contribui para degradar o trânsito e aumentar as mortes em acidentes.
Os
problemas não se restringem ao trânsito. A poluição, causada essencialmente
pelos veículos, em São Paulo, voltou a piorar, agravando, também, as tendências
ao aquecimento da região.
A cada dia, duas ou três horas da vida de dez
milhões de pessoas seja jogada fora, num estresse sem propósito. Mas elas têm
dificuldades de perceber seu caráter grotesco
Temendo
desgastar-se, a prefeitura não adota medidas de restrição à circulação de
veículos — como pedágios urbanos, praticados nas capitais européias, exclusão
dos automóveis particulares do centro velho, aumento do rodízio (como fez a
Cidade do México) e da fiscalização (um terço da frota é irregular), maiores
restrições a caminhões no centro ou a simples expansão das zonas azuis. Também
não acelera a criação de corredores exclusivos de ônibus, por pressão dos
comerciantes e moradores das vias onde eles seriam implantados.
O
prefeito Gilberto Kassab afirmou que os congestionamentos são resultado da
falta de investimento municipal na expansão do metrô nos últimos 32 anos. Para
Kassab, agora “não adianta chorar sobre o leite derramado” [1].
O presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego (e seu gestor em vários
governos conservadores) Roberto Scaringella foi mais franco: não haverá
“medidas radicais que dariam fluidez” ao trânsito, porque “podem impactar
negativamente a economia”. “A conseqüência é que a gente terá de aprender a
conviver com um número maior de quilômetros de lentidão. Quando eles se
excedem, não gera um colapso da cidade, mas a deterioração e a delinqüência
urbana”, completou Scaringella [2].
Pressionada pela imprensa, a prefeitura acabou anunciando uma série de medidas,
mas elas são cosméticas: redução do espaço para estacionamento em algumas ruas,
divulgação de rotas alternativas às vias principais etc.
A atuação
do governo do Estado também é marcada pela inação. Ele não acelera a expansão
do metrô e, tampouco, cumpre as metas de construção da Linha 4 - Amarela, onde
os métodos privatistas geraram sucessivos desastres e atrasos [3]. Perdido em disputas menores de rateio
dos custos com a prefeitura, o governo, nem mesmo, geri uma integração adequada
com a rede de ônibus.
É absurdo
que duas ou três horas por dia da vida de dez milhões de pessoas seja jogada
fora, em um estresse sem propósito. Mas o sistema do automóvel está tão
profundamente arraigado no imaginário das pessoas que elas têm dificuldades de
perceber seu caráter grotesco. É aceito como natural ou inevitável, permitindo
que governantes ajam de forma irresponsável.
No
entanto, como afirma o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, “é como se tivéssemos
inventado uma máquina de produzir veneno e, todo dia, nos empenhássemos em
aprimorá-la. A questão dos transportes é fundamental. Não se trata, puramente,
de introduzir conforto. Trata-se de ver que, queimar petróleo para transportar
uma pessoa de 60 quilos numa lataria de 700 quilos, que não anda, é um erro
grave. É repugnante ver a cidade congestionada de carros que não andam. A
questão não é fazê-los andar, é ver que isso não tem saída, o transporte
individual é uma bobagem. Construir túneis e viadutos é aprimorar a máquina do
veneno. E já não importa que o carro não ande, porque você vê todo mundo lá
dentro falando no celular, usando o laptop... É a rota do absurdo” [4].
O correto é que o uso do transporte individual
seja desestimulado, o coletivo favorecido e o usuário do carro passe a pagar
por todo o impacto que provoca
O
proprietário do carro impõe, a toda sociedade, custos que ele não paga no IPVA
ou quando compra o automóvel. Ocupação do espaço público (50% do território
urbano em São Paulo é dedicado ao transporte), perda de tempo, danos à saúde de
milhões de pessoas etc. O correto é que o uso do transporte individual seja
desestimulado, o coletivo favorecido e o usuário do carro passe a pagar por
todo o impacto que provoca.
Parece
evidente que não se pode esperar nada dos governantes! Esse é um problema que
São Paulo só poderá enfrentar se organizar um movimento cidadão que reúna força
política para libertar a cidade da ditadura do automóvel. Uma mobilização com
propósitos claros, capaz de impor uma expansão da oferta e qualidade do
transporte público e reduzir o espaço para o carro.
Assistimos,
nos últimos anos, ao acúmulo de uma série de problemas de novo tipo, gerados
pela lógica sem freios do mercado. Esse cobram um preço humano e ambiental cada
vez maior.
O caso
mais notório é o do aquecimento global, resultado de toda a economia do
petróleo, carvão e automóvel, associada ao consumismo desenfreado. Ela exige
pensarmos a atividade produtiva em função das necessidades humanas e não da
busca do lucro e, portanto, do crescimento. Mas, como manter o capitalismo sem
a maior expansão possível?
E agora
os moradores de São Paulo enfrentam as conseqüências da irracionalidade que
representa a “racionalidade” do mercado. Cada um busca satisfazer seus desejos
na lógica do transporte (ou do consumo) individual, sem que haja intervenção do
poder regulador de caráter público tolhendo os absurdos que o consumismo
carrega.
Todas são
questões que colocam a necessidade de outra vida e de outra organização da
nossa sociedade em discussão.
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[1] Folha de S.Paulo, 7/3/2008,
p. C6.
[2] Folha de S.Paulo, 9/3/2008,
p. C3
[3] Quando licitada em 2001, a Linha 4 -
Amarela estava prevista para entrar em operação em 2006. Mas, na melhor das
hipóteses, ela começará a funcionar de forma parcial, em 2010!
[4] Entrevista concedida à Carta
Capital, 15 de agosto de 2007, p. 64.
José Correa
Leite - (06/05/2008)
Fonte: http://diplo.org.br/2008-05,a2337
– Acessado em 26.12.2016
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