COMO RECONQUISTAR O DIREITO DE ENTENDER COMO AS COISAS FUNCIONAM
A normatização do reparo dá autonomia aos
indivíduos. Só assim, qualquer pessoa interessada pode passar de consumidora
passiva à construtora do seu próprio entorno
“Sentia-se
péssimo ao perceber que, embora viesse originalmente de um mundo com carros,
computadores, balé e Armagnac, ele não sabia, por conta própria, como aquelas
coisas funcionavam. Não era capaz de fazer nada daquilo. Sozinho, era incapaz
de construir uma torradeira. O máximo que conseguia era fazer um sanduíche e
olhe lá.” – Douglas Adams em “O Guia do Mochileiro das Galáxias”
Estamos
cercados de eletrônicos vindos de terras distantes, fabricados por mãos-de-obra
baratas, e imensamente complexos no funcionamento dos seus minúsculos
componentes.
Um mundo
onde quase ninguém sabe construir uma torradeira. Nem a pessoa encarregada de fazer o
projeto da torradeira, nem as pessoas que montam as diversas partes da
torradeira.
Mas muita
gente adora comer sanduíches. E por isso se torna dependente da torradeira, a
mercê desse objeto sobre o qual não sabe quase nada.
Até que um
dia, por algum motivo tão desconhecido quanto ela própria, a torradeira vai,
inexoravelmente, parar de funcionar. E existem várias artimanhas para nos
convencer, que, quando isso acontecer, o melhor a fazer seria jogar a
torradeira fora.
Esse
momento têm chegado cada vez mais cedo, em parte graças a um fenômeno
chamado obsolescência programada, que é quando um objeto é projetado para diminuir de
propósito sua vida útil. As peças em geral são mais frágeis em pontos
estratégicos, e às vezes o objeto é deliberadamente programado para parar de
funcionar depois de um tempo.
Toni
Conde, expert multimídia e professor do Instituto Federal de Tecnologia de
Lausanne explica que “Alguns fabricantes de cartões de
memória para câmeras e smartphones limitam o número de possíveis fotos ou
vídeos. Depois de uma determinada cota, o cartão se torna inutilizável. Isso
também acontece com impressoras. Algumas são programadas para pararem de
funcionar depois de um certo número de impressões”.
Em um
artigo 1936, Bernard London sugere que o consumo seja implementado como
principal razão de viver dos americanos, e para isso, os bens deveriam ser
substituídos com mais frequência. Esse documentário mostra que
inúmeros produtos estão sendo fabricados para durarem cada vez menos, para que continuemos
consumindo (e, consequentemente, produzindo lixo). Impressoras Epson, por
exemplo, são programadas para pararem de funcionar depois de dezoito mil
cópias. (felizmente, existe uma forma de hackear as impressoras e aumentar indefinidamente suas vidas.)
Fazer acessórios que são incompatíveis de um modelo para o outro também é uma
forma deliberada de levar os consumidores a inutilizar as antigas peças, mesmo
que ainda estejam em perfeito estado. Isso acontece muito com carregadores ou
baterias de smartphones, que mudam a cada novo modelo, para que toda a
parafernália associada ao celular antigo tenha que ser jogada fora.
Outra
grande parte do lixo desnecessário é produzido por um fenômeno chamado obsolescência
percebida que é quando um objeto ainda é totalmente funcional,
mas graças à cultura da moda, é percebido como velho ou antiquado e é
substituído por outro objeto com design atualizado. Isso acontece especialmente
com roupas, mas também com acessórios em geral.
Tudo isso
é especialmente problemático porque nossa economia é linear, ou seja, a maioria
do que consumimos acaba no lixo. Segundo a Ellen McArthur Foundation 80% de
todos os produtos de consumo que compramos vira lixo. Sem volta, sem
reciclagem, nada. Lixo puro.
Quando
Ellen McArthur bateu o recorde de volta ao mundo solo em um veleiro, ela teve
que reunir de uma vez, absolutamente tudo que precisaria para os 71 dias de
viagem. Ver aquele espaço finito com tudo amontoado: pasta de dente, roupas,
comida… e depois ver o lixo que ia se formando dentro do veleiro, fez com que
ela se desse conta de que o planeta Terra também é um espaço finito e que
estamos todos no mesmo barco. Apesar de óbvia, essa constatação é também
arrebatadora quando paramos para pensar.
Depois de
voltar para o continente, Ellen criou um instituto para ajudar iniciativas que
incentivem a economia circular. Que é aproximar a economia do que acontece em
todos os outros ecossistemas da natureza, em que o próprio conceito de lixo nem
existe.
É claro que
reciclar é importante, mas também exige muita energia, combustíveis e recursos.
O ideal seria, em primeiro lugar, evitar a produção de lixo, prevenir ao máximo
o descarte de produtos.
E uma das
maneiras mais eficientes de se fazer isso é aumentando a vida útil das coisas,
entendendo como elas funcionam, e sendo capaz de consertá-las, quando
necessário.
Com o
desenrolar do século vinte, a produção em massa somada à falta de tempo
crônica, fizeram com que habilidades de pequenos consertos gerais diminuíssem
drasticamente entre as pessoas. E com isso nossa relação com os objetos mudou.
Simples
reparos como pregar a perna de uma cadeira, ou colar a sola do sapato, estão
cada vez menos comuns, e assim cultura do desperdício se alastrou de canetas e
pequenos objetos para itens maiores, como roupas e móveis.
De repente
vivemos num mundo onde comprar um novo produto é mais simples, prático, fácil e
barato do que consertá-lo.
Para
reverter essa lógica, estão surgindo “grupos de reparos” pelo Brasil afora,
como a Cidade da Bicicleta em Porto Alegre, que disponibiliza uma oficina
comunitária para consertos de bicicletas. Você pode chegar lá com sua bici, e
voluntários te ensinam a consertá-la. Logo você poderá retribuir o favor
ensinando outros a também consertarem suas bicicletas.
E assim,
além de expandir o conhecimento e também a autonomia das pessoas, os grupos de
conserto acabam criando um senso de comunidade, cuidado e ajuda mútua.
Entender
como um objeto mecânico – como uma bicicleta – funciona, é principalmente questão de observação e lógica. Então quando tudo era mecânico também o
conserto era muito mais difundido e simples.
Mas para
entender o funcionamento de chips ou componentes eletrônicos não basta
paciência e observação lógica, é preciso aprender um novo idioma.
Então os
objetos dos quais mais dependemos diariamente são também estrangeiros para nós:
não falamos seus idiomas, eles foram fabricados em países distantes, e acima de
tudo não temos nenhuma relação com eles para além de suas funções. Não existe
afeto. Nossos objetos eletrônicos em geral nos servem para suas funções, e
quando estão menos do que perfeitos, são rapidamente substituídos.
Assim como
as oficinas comunitárias de bicicletas, os Cafés Reparo são
espaços que ensinam, gratuitamente, as pessoas a consertarem seus objetos
quebrados. Técnicos voluntários se sentam ao lado dos donos de objetos
quebrados, e juntos eles abrem o objeto, olham e compreendem seu funcionamento,
e por fim, o consertam.
Simples
assim, mas ao mesmo tempo esse é um movimento super potente, que provoca ações
imediatas, dinâmicas e eficazes na contramão da cadeia de consumo em massa e da
produção desenfreada de lixo.
Pedro
Belasco, que participa de vários projetos que buscam fomentar a cultura hacker, tem ajudado a
organizar os encontros do Café Reparo em
São Paulo. Para ele, mais do que consertar os objetos, os encontros servem para
“fazer com que os
participantes tomem consciência da forma como a indústria os manipula”.
Nesse sentido os cafés reparo servem para dar ferramentas e conhecimento para
que seus frequentadores possam evitar a estrutura de consumo linear, e também
para que ganhem um pouco mais de autonomia e compreensão de objetos eletrônicos
e digitais.
“Para mim, esse conhecimento de como as
coisas funcionam deve ser acessível, se não for, é uma questão política
torná-los abertos. Abrir uma televisão e ter acesso aos esquemas eletrônicos é
um direito fundamental, porque todo o conhecimento é resultado do legado da
humanidade, e todo desenvolvimento tecnológico acontece por sobre o acúmulo de
avanços passados.” – Pedro Belasco
Atualmente
Belasco está pondo em prática um plano audacioso, ele quer prototipar um
aparelho musical para “ter a
experiência de pilotar um projeto de manufatura industrial de eletrônicos”
e, com isso, hackear a cadeia do consumo de dentro para fora, “entender quem são os players, como se
organiza a cadeia produtiva que nos levou a este estado cultural lastimável.”
Ser capaz
de entender como seu celular realmente funciona é libertador. Consertar sua
torradeira pode ser uma experiência extremamente gratificante.
Ao abrir,
olhar dentro e compreender sua estrutura e funcionamento, a relação que se tem
com um objeto muda completamente. “A
Intervenção aqui é importante também por criar valores sociais. É preciso ter
cuidado com esses itens para mante-los ‘vivos’. E cuidado é uma emoção positiva
para se investir.” trecho retirdo da apresentação de um café reparo
australiano.
Nesse
sentido “consertar é
uma extensão natural de ‘compreender’, um processo criativo que traz
um imenso sentimento de satisfação”. Assim se passa a ter uma
relação de afeto e cuidado, e o objeto passa a existir para além da sua função.
A Oficina
Comunitária de Bicicletas e os encontros do Café Reparo fazem
parte de um movimento que provoca contra-ações em busca de normatizar o reparo
e dar autonomia às pessoas. Para que qualquer pessoa interessada possa passar
de consumidora passiva à construtora do seu próprio entorno, o que no fim a
ajuda a habitar a própria existência de forma mais ativa. Existem também
comunidades digitais de reparo, como o site I fix it, que disponibiliza tutoriais para
consertos de mais de mil produtos.
Fonte: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/08/como-reconquistar-direito-entender-coisas-funcionam.html?utm_source=push&utm_medium=social&utm_campaign=artigos
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