“JAMAIS
ACEITE O SEU MUNDO COMO NORMAL, RACIONAL E JUSTO” – UMA ‘CONVERSA’ COM ALDOUS
HUXLEY
Por Camila Nogueira – 24.09.2017.
No plano humano, os homens vivem imersos em ignorância,
concupiscência e temor. Disto resultam alguns prazeres temporários, muitas misérias duradouras e frustração final”.
concupiscência e temor. Disto resultam alguns prazeres temporários, muitas misérias duradouras e frustração final”.
Selecionamos, como novo convidado de nossa
série Conversa com Escritores Mortos, Aldous Huxley (1894 – 1963), autor,
entre outras coisas, de Admirável Mundo Novo, publicado em 1932. Os
excertos abaixo foram retirados de três de seus livros: Admirável Mundo
Novo, Contraponto e Também o Cisne Morre.
Mr. Huxley,
vamos começar nossa entrevista com um dos temas mais recorrentes em sua obra –
a ciência. Em muitos de seus livros, principalmente em Admirável Mundo Novo, a
ciência assume uma faceta quase, por assim dizer, ameaçadora…
A ciência fez muito mais para aumentar a servidão que para diminuí-la.
Em primeiro lugar, pelas aplicações na guerra. Melhores aeroplanos, melhores
explosivos, melhores canhões e melhores gases – cada melhoramento aumenta a
soma de terror e ódio, dilata a incidência da terrível histeria nacionalista.
Em outras palavras, cada melhoramento em matéria de armamento torna mais
difícil esquecermos essas horríveis projeções de nós mesmos que se chamam os
ideais de patriotismo, de heroísmo e de glória.
E quanto às aplicações menos destrutivas da
ciência?
Elas não são, na realidade, muito mais satisfatórias.
Por que?
Porque resultam na multiplicação de objetos possíveis,
na invenção de novos instrumentos de estimulação e na disseminação de novas necessidades,
por intermédio da propaganda. O terrível objetivo da propaganda é fazer com que
os homens confundam posses com bem-estar.
No mundo em
que vivemos, é natural que confundamos essas duas coisas, por menos justo e
saudável que seja. O que fazer para nos distanciarmos dessa noção, que faz de
nós como que escravos de nossas próprias posses?
Jamais aceite o seu mundo como normal,
racional e justo. Não deixe que os propagandistas multipliquem suas
necessidades, não identifique a felicidade com as posses e a prosperidade com o
dinheiro para gastar nas lojas.
Fazer o bem
não é importante?
É melhor contentar-se com a abstenção de fazer o mal; é
mais fácil e não produz resultados tão terríveis como tentar fazer o bem de
maneira errada.
Mais alguma
coisa?
Seja cínico.
O cinismo é
uma qualidade?
Se não for excessivo, sim. Boa parte das coisas que nos
ensinaram a respeitar e a reverenciar não merecem mais do que cinismo.
Considere o seu próprio caso. Você foi ensinada a cultuar ideias como o
patriotismo, a justiça social, a ciência e o amor romântico. Disseram-lhe que
virtudes como a lealdade, a temperança, a coragem e a prudência são boas em si
mesmas, independentemente das circunstâncias. Garantiram-lhe que o sacrifício é
sempre esplêndido e que os belos sentimentos são sempre bons.
E…
Quem não for firme e inabalavelmente cínico em relação
ao palavrório solene dos políticos, bispos, banqueiros e todos os demais está
perdido… Completamente. Condenado à prisão perpétua no cárcere do ego,
condenado a ser uma personalidade no mundo das personalidades – mundo este que
é nosso mundo; mundo da cobiça, do medo e do ódio, da guerra e do capitalismo,
da ditadura e da escravidão.
A cobiça e
a ganância são realmente terríveis.
Em nossa sociedade moderna, o ideal franciscano é
impraticável. Mas isso não significa que possamos simplesmente desdenhar são
Francisco como se ele fosse louco. Pelo contrário, a loucura é nossa e não
dele.
Você enxerga méritos na pobreza, então?
A pobreza e o sofrimento só enobrecem quando são voluntários.
A pobreza e o sofrimento involuntários só podem tornar piores os homens.
Você é
socialista?
O socialismo parece implicar fatalmente na centralização
e na produção em massa, urbana e padronizada. Não sou socialista, pois vejo em
tal sistema muitas ocasiões para o despotismo, muita oportunidade para os
mandões darem vazão à sua mandonice, para os indolentes se submeterem à
servidão.
Então você
não apoia o socialismo nem o capitalismo?
Acho que a solução não está em nenhum desses dois
sistemas.
Em qual,
então?
Quem quiser tornar o mundo um lugar adequado terá que
formar um sistema que reduza ao mínimo a quantidade de cobiça, medo, ódio e
dominação – um sistema que proporcione segurança econômica o bastante para
livrar os homens ao menos dessa fonte de preocupação e propriedade o suficiente
para protegê-los de maus tratos por parte dos ricos, mas não demais, para não
deixar que maltratem o próximo.
Interessante…
Mas não será fácil.
É claro que não será nada fácil. Nada se pode fazer de
efetivo por alguém que não queira ou não possa colaborar conosco. Por exemplo,
não será possível preservar os homens dos horrores das guerras se não estiverem
dispostos a renunciar aos prazeres do nacionalismo. Sera impossível livrá -los
das crises e depressões enquanto eles teimarem em pensar apenas em termos de
dinheiro.
O
nacionalismo é tão ruim assim?
O nacionalismo sempre produzirá, pelo menos, uma guerra
a cada geração.
Alguma
coisa além da não aceitação do mundo tal como é, do cinismo e da abstenção de
fazer o mal?
A origem de alguns de nossos erros mais fatais consiste
na seriedade mal aplicada.
Por que?
Só devemos levar a sério o que merece ser levado a
sério.
Você
mencionou as coisas nas quais acreditamos equivocadamente: o nacionalismo, a
justiça social, a ciência e o amor romântico. Quanto ao nacionalismo, muito bem
– o que disse faz todo o sentido. Mas pensemos nas outras três coisas. Por que
devemos deixá-las de lado?
Não sugiro que as deixem completamente de lado. Só não
lhe deem muita importância. Isto é, a barbárie consiste em pender mais para um
lado do que para outro. Pode-se ser um bárbaro do intelecto, bem como um
bárbaro do corpo… Um bárbaro da alma e dos sentimentos, bem como da
sensualidade. O cristianismo nos fez bárbaros da alma, e agora a ciência nos
está fazendo bárbaros do intelecto.
Faz
sentido!
Por falar em barbárie, já ouviu algo mais bárbaro do que
a tosse? Ela não deveria ser sequer permitida em uma sociedade civilizada.
Verdade.
Agora vamos falar de sua área de especialidade – ou seja, a literatura.
Tenho uma relação bastante complicada com a
literatura.
Como assim?
Eu a aprecio, mas reconheço seus defeitos.
Como por
exemplo…
Um dos maiores defeitos da chamada boa literatura é que,
aceitando a escala convencional de valores, respeitando o poder e a posição
social, admirando o sucesso, considerando razoáveis as preocupações, em geral
tolas, dos estadistas, amantes, homens de negócios e dos ansiosos por subir na
escala social (numa palavra, levando a sério tanto as causas dos sofrimentos quanto
os próprios sofrimentos), ela contribui para perpetuar a desgraça, aprovando,
implícita ou explicitamente, uma longa lista de ideias, sentimentos e práticas
que só podem resultar em desgraça. A pior parte é que tais coisas são expressas
na linguagem mais magnífica e persuasiva – de modo que, mesmo quando uma
tragédia acaba mal, o leitor, hipnotizado pela eloquência da peça, sente-se
propenso a pensar, ainda assim, que tudo aquilo era, de algum modo, nobre e
compensador.
O que, na
sua opinião, não são.
Considerados desapaixonadamente, nada podia ser mais
sórdido do que os temas de Fedra, de Otelo, de O Morro dos Ventos Uivantes ou
de Agamêmnon. Mas, como a maneira de exibir estes temas é sublime e empolgante
no mais alto grau, o leitor ou espectador fica na convicção de que, a despeito
da catástrofe, “tudo estava muito bem nesse mundo”, o mundo demasiadamente
humano que produzira aquela tragédia.
Alguma
sugestão literária?
Leia o que quiser, desde que acrescente algo à sua vida.
Muitas vezes, lemos um livro todo e não achamos uma simples frase de que nos
possamos lembrar para fazer uma citação. Eu pergunto: para que servem livros
assim?
Em seus
livros – especialmente em Admirável Mundo Novo e em Contraponto – você tratou
de temas como a devassidão. Falemos um pouco disso.
Creio que há na devassidão alguma coisa intrinsecamente
monótona, alguma coisa absoluta e desesperadamente triste.
Como assim?
Ouso dizer que as pessoas mais promiscuamente devassas
são muitas vezes aquelas a quem a natureza cruel negou talento para a
galanteria. Privadas, por uma frigidez constitucional, do gozo do prazer, vivem
em eterna rebeldia contra seu destino. A força que as leva a multiplicar o
número de suas aventuras galantes não é a sensualidade, e sim a esperança. Isto
é, não o desejo de reiterar a experiência de um prazer conhecido – e sim a
aspiração a uma felicidade vulgar e mui gabada, que nunca tiveram a fortuna de
experimentar.
Interessante!
A maioria dos devassos é assim não porque goste da
devassidão, mas sim porque sente mal-estar quando se priva dela. O hábito
transforma os gozos peculiares em necessidades monótonas e cotidianas. O homem
que adquiriu o hábito das mulheres ou da genebra, de fumar cachimbo ou de
suportar a flagelação, acha tão difícil viver com os seus vícios como viver sem
pão e água.
Mesmo
quando a prática do vício tornou-se tão despida de sensação como comer um
pedaço de pão ou beber um copo de água?
É assim que os vícios funcionam. O viciado desce,
infatigável e desesperadamente, ao vale das sombras na sua mortezinha
particular, à procura de algo diferente de si mesmo, algo diverso e melhor que
a vida que vive miseravelmente, na condição de pessoa humana, no mundo hediondo
das pessoas humanas. Desce e, ou violentamente, ou em deliciosa inércia, morre
e se transfigura – mas morre apenas por algum tempo, só se transfigura
momentaneamente. Após a pequena morte, dá-se a pequena ressurreição: ressurge-se
da inconsciência, da excitação auto-aniquiladora, para a mísera consciência da
solidão, da fraqueza, da indignidade, para uma separação mais completa, um
senso mais agudo da personalidade. E, quanto mais aguda a sensação da
personalidade separada, mais urgente a necessidade de uma nova experiência
paliativa de morte e transfiguração… O vício alivia, mas, aliviando, aumenta as
dores que necessitam de alívio.
A condição
de pessoa humana, no mundo hediondo de pessoas humanas, é sempre –
obrigatoriamente – miserável?
Claro. No plano humano, os homens vivem imersos em
ignorância, concupiscência e temor. Disto resultam alguns prazeres temporários,
muitas misérias duradouras e frustração final.
Fonte: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/jamais-aceite-o-seu-mundo-como-normal-racional-e-justo-uma-conversa-com-aldous-huxley-por-camila-nogueira/
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