DEPURAÇÃO GENÉTICA
Cientistas americanos usaram com
sucesso uma técnica de edição genética em embriões humanos, o que torna mais
próxima a correção de defeitos congênitos antes do nascimento. Mas pensadores
alertam: isso poderia criar uma classe social superior.
O
casal é apaixonado, jovem e saudável e, claro, quer ter um filho. Como o
deseja? Física e mentalmente perfeito, loiro de olhos azuis, ou moreno escuro
alto e musculoso, ou talvez uma linda garota descendente de italianos, porém
com os olhos amendoados de chinesa? Pois bem, dentro em breve, escolhas desse
tipo serão perfeitamente possíveis e, com o inevitável desenvolvimento da
tecnologia da engenharia genética, até corriqueiras.
A mais
recente, bem-sucedida e promissora pesquisa de edição genética de embriões
humanos – que levou ao seu mais alto estágio a chamada técnica CRISPR (sigla em
inglês para Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente
Interespaçadas) – foi liderada por Shoukhrat Mitalipov, da Universidade de
Ciência e Saúde do Oregon (noroeste dos EUA) e fartamente noticiada no início
de agosto. A equipe de Mitalipov seria a primeira a ter conseguido modificar um
número elevado de embriões humanos sem introduzir falhas no genoma que os
tornassem inviáveis. O CRISPR permite eliminar do genoma determinadas
sequências de DNA indesejadas, como genes que predispõem a algumas doenças.
Essa
possibilidade de editar ou modificar uma sequência do código genético de um
organismo, especialmente um embrião humano, é ao mesmo tempo “revolucionária” e
“perturbadora”. Se por um lado já é tecnicamente possível editar a linha
genética do embrião para evitar que determinadas doenças sejam repassadas às
gerações futuras, por outro lado, mutações off-target (fora do alvo), durante a
edição, poderiam introduzir novas doenças, talvez passíveis de ser descobertas
apenas após o início da vida reprodutiva da pessoa. Isso poderia comprometer a
saúde de todos os seus descendentes.
Erro perpetuado
Se
isso acontecesse, as consequências seriam catastróficas não apenas para o
indivíduo cujo genoma foi editado, mas para todos os seus descendentes.
Exatamente por causa de riscos como o das mutações off-target é que foram
descartadas até agora as intenções de se implantar o embrião modificado em um
útero onde poderia se desenvolver normalmente. Vários pensadores da ciência
manifestaram-se preocupados com os aspectos éticos da questão.
Entre eles
está o filósofo brasileiro Marcelo de Araújo, que, em recente entrevista ao
site IHU On-line, questiona a “segurança desse procedimento para as gerações
futuras”. Araújo, por outro lado, abre ainda mais o leque das contestações ao
indagar: “Podemos nos perguntar, por exemplo, quem terá acesso à edição
genômica. Se apenas as pessoas muito ricas tiverem acesso ao procedimento, isso
não poderia contribuir para agravar ainda mais as desigualdades sociais já
existentes?”
As
preocupações desse cientista têm, sem dúvida, suas razões de ser. Por enquanto,
o uso de edição de código genético para aprimoramento humano, ou seja, para a
seleção de características específicas como inteligência mais elevada, ainda
não é permitido. Mas, como explica Araújo, à medida que o conhecimento nessa
área for aumentando, a possibilidade de se recorrer à edição genômica para fins
de aprimoramento (e não apenas para fins de tratamento de doenças congênitas)
terá de ser levada a sério. Isso exigirá um amplo debate ético no âmbito da
sociedade civil e da comunidade científica internacional.
Último recurso
Por
que esse debate? A resposta é simples: a aplicação dessa técnica em embriões
humanos é muito mais polêmica, pois poderia ser usada para criar humanos com
capacidades superiores. Ao modificar a chamada linha germinal – que compreende
espermatozoides e óvulos –, as mudanças introduzidas com o CRISPR num indivíduo
se transmitiriam de geração em geração. Por tudo isso, em fevereiro deste ano,
um painel de especialistas reunidos pela Academia Nacional de Ciências dos EUA
concluiu que o uso do CRISPR em embriões humanos é aceitável, mas não sem que
antes se façam muito mais pesquisas sobre os riscos envolvidos. A edição do
genoma deveria ser aplicada apenas como último recurso.
Até
porque, como comenta o médico oncologista e escritor indiano-americano
Siddharta Mukherjee, autor do livro O Gene: Uma História Íntima e, no momento,
um dos mais importantes pensadores da ética da ciência, “o público acredita
que os genes produzem características, que os genes são sinônimo de
características, e claramente esse não é o caso”. Mukherjee prossegue: “Agora
sabemos que, para a maioria das características humanas, o normal é que vários
genes ajam em conjunto e que o ambiente desempenhe um papel muito importante.
Tampouco creio que tenhamos uma compreensão humanística sobre o tipo de mundo
em que viveremos uma vez que começarmos a levar a cabo esse tipo de
manipulação.
O que
aconteceria se essas tecnologias só estivessem disponíveis para os ricos?
Teríamos uma sociedade que não só estaria dividida por uma brecha econômica
como também as novas tecnologias criariam uma subclasse genética. Parece-me que
o perigo é enorme. Não sou pessimista sobre o poder de utilizar essas
tecnologias genéticas tão potentes para curar doenças, mas também creio que
todos nós deveríamos parar para pensar antes de avançar com demasiada rapidez
em direção a esse futuro.”
Precisão e eficácia
Depois
disso, uma enzima denominada Cas9 encontra o local correto para cortar a
carreira de genes do vírus e desativá-lo. Recentemente, os pesquisadores
descobriram que o Cas9 é muito preciso em relação ao local em que o DNA será
cortado. Basta mudar o RNA enviado – as coordenadas – para repetir a mesma ação
no genoma de qualquer ser vivo, com pouco risco de errar o alvo. Além disso, o
processo todo pode ocorrer simultaneamente em quantas células for necessário.
Fábricas de órgãos
Avanços na geração de órgãos humanos em porcos prometem destravar a
fila de transplantes, mas acendem o alerta contra maus-tratos aos animais.
A
espera por um transplante de órgãos pode ser reduzida com a ajuda de animais e
de certa dose do que soa a ficção científica. Avanços na combinação de edição
de genes com clonagem permitiram fazer crescer órgãos humanos – como pâncreas,
rim, fígado e coração – em corpos de suínos, nos Estados Unidos. Duas pesquisas
divulgadas em agosto colaboram nesse sentido. No experimento da Universidade da
Califórnia, os cientistas removeram o gene de um embrião de porco
recém-fertilizado in vitro que levaria ao crescimento do pâncreas no feto.
Depois
injetaram células-tronco humanas nesse embrião para que crescesse ali um
pâncreas com tecido humano. Já a pesquisa realizada na Universidade Harvard
editou os genes suínos que representam risco para o corpo humano. A técnica
ainda depende do aval das autoridades norte-americanas de saúde, mas os
pesquisadores envolvidos acreditam que em dois anos o cultivo e o transplante
de órgãos de porcos para humanos poderá se tornar um procedimento acessível ao
público.
Pesquisas
nas mesmas linhas das citadas acima estavam paralisadas desde a década de 1990,
quando foram descobertos vírus no DNA suíno que poderiam afetar os humanos.
Conhecidos como retrovírus, eles são semelhantes aos que causam leucemia em
macacos. Ao cultivarem-se certas células de porco ao lado das células humanas,
observou-se que esses microrganismos se espalhavam para as células humanas. O
grande avanço do experimento de Harvard é que os genes que podem causar essas
doenças ou rejeição do corpo humano são alterados ou retirados.
Atualmente,
células de pâncreas de porco já são usadas em pacientes com diabete, enxertos
de pele de porco servem a vítimas de queimaduras e válvulas do coração de
porcos são transformadas em próteses na recuperação de pacientes com problemas
cardíacos. Os porcos são os animais eleitos para esse tipo de “fábrica de
órgãos” por terem órgãos com tamanho e estrutura semelhantes aos dos seres
humanos. Além disso, a gestação suína é rápida: dura cerca de 115 dias. Mas o
uso de animais para esses fins sempre levanta um interminável debate sobre o
bem-estar das espécies usadas para servir os humanos, especialmente porque suas
vidas são tiradas juntamente com os órgãos gerados dentro deles.
FONTE:
http://www.revistaplaneta.com.br/depuracao-genetica/
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